Campanha pela Abolição da Episiotomia de Rotina

10/09/2008 23:38

Todos os anos, milhões de mulheres na América Latina têm sua vulva e vagina cortadas cirurgicamente (musculatura vaginal, tecidos eréteis da vulva e vagina, vasos e nervos) sem que haja qualquer necessidade médica(1).

Esse corte, chamado episiotomia, tem sido utilizado de rotina em centenas de milhões de mulheres desde meados do século XX, com base na crença de sua necessidade para facilitar o parto, e para a preservação do estado genital da parturiente.
A partir da metade da década de 80, há evidência científica sólida recomendando a abolição da episiotomia de rotina (redução do seu uso a no máximo 10-15% de casos), uma vez que para a grande maioria das mulheres, o procedimento ao invés de promover a saúde genital ou a do bebê, provoca danos sexuais importantes, dor intensa, aumenta os riscos de incontinência urinária e fecal, e leva a freqüentemente complicações infecciosas, problemas na cicatrização e deformidades, entre outros(2). No Brasil e em outros países, temos o agravante do chamado "ponto do marido", a apertada adicional da vulva supostamente para "devolver à mulher a condição virginal", muito freqüentemente associada a dores na relação sexual e mesmo à impossibilidade da penetração, necessitando correção cirúrgica(3,4).


Por esses motivos, a episiotomia de rotina tem sido considerada por vários autores como uma forma de mutilação genital(5,6), e mesmo como violência de gênero cometida pelas instituições e profissionais(7,8,9). Alguns já propõem uma mudança de nomenclatura, chamando a episiotomia desnecessária de rotina como "lesão genital iatrogênica no parto", "agravo sexual iatrogênico" ou de "ferimento sexual iatrogênico no parto"(10). O abuso de episiotomias tem sido considerado uma questão exemplar de desrespeito aos direitos humanos na área de saúde(11).


Poucas questões de saúde e de violência sexual tem a magnitude e a gravidade na vida das mulheres, e são tão preveníveis quanto a episiotomia. Além de seu potencial em reduzir o sofrimento das mulheres, a restrição do uso da episiotomia implicaria ainda em uma importante economia do setor saúde, preservando desse agravo milhões de mulheres por ano.

Nas demais regiões do mundo, as evidências científicas levaram a uma gradual redução das episiotomias, enquanto na América Latina, há uma enorme resistência à mudança e a maioria dos serviços, públicos ou privados, mantêm uma taxa de episiotomia de mais de 90% nos partos vaginais(12).
Se for considerado que, de acordo com evidências científicas, a episiotomia tem indicação de ser usada em cerca de 10% a 15% dos casos e ela é praticada em mais de 90% dos partos hospitalares na América Latina, pode-se entender que anualmente milhões de mulheres têm sua vulva e vagina cortadas e costuradas sem qualquer indicação médica. Um estudo mostrou que o uso rotineiro e desnecessário da episiotomia na América Latina desperdiça anualmente cerca de US$ 134 milhões só com o procedimento, sem contar nenhuma de suas freqüentes complicações(13).
No caso brasileiro, a questão da episiotomia é marcadamente um problema de classe social e de raça: enquanto as mulheres brancas e de classe média que contam com o setor privado da saúde, em sua maioria serão "cortadas por cima" na epidemia de cesárea, as mulheres que dependem do SUS (mais de dois terços delas) serão "cortadas por baixo", passarão pelo parto vaginal com episiotomia. Como as mulheres negras têm características diferentes em termos de cicatrização, pela maior tendência a formação de quelóides [cicatrizes tumoriformes mais comuns nos indivíduos de raça negra(14)], acreditamos que estão mais sujeitas a complicações cicatriciais da episiotomia.
Não raro os casos de aleijões genitais resultantes da episitomia (informal e jocosamente classificados pelos profissionais como "hemibundectomia lateral direita" ou como "AVC de vulva") vão depois compor a demanda de outro profissional, o cirurgião plástico especializado em corrigir genitais deformados por episiotomias - isso para as mulheres que têm recursos para pagar os procedimentos corretivos.
Diferentemente das mulheres que são atendidas no setor privado e nas quais os procedimentos cortantes como a episiotomia serão realizados sob a ação da anestesia peridural, no caso das mulheres do SUS a episiotomia e sua sutura será feita com bloqueio local do períneo, procedimento considerado em estudos qualitativos como altamente ineficaz, resultando em dor intensa, com as mulheres chorando e gemendo "do primeiro ao último ponto"(15).

Nesses casos, as mulheres relatam que o momento mais doloroso da parto foi exatamente o da sutura da episiotomia. Muitas mulheres relatam que escolhem a cesárea para fugir de uma episiotomia, especialmente depois de uma experiência traumática e com seqüelas(16).
Estudos sobre o risco de infecção da episiotomia de rotina mostram que, se comparado com o risco das mulheres que não sofreram episiotomia ou que tiveram laceração espontânea, foi de 5 a 11 vezes maior nas submetidas ao procedimento(17).

Há mesmo uma complicação infecciosa rara mas freqüentemente fatal da episiotomia, a fasciíte necrotizante. Dados dos Estados Unidos e Inglaterra mostram que naquelas pesquisas essa complicação respondeu até por um quarto das mortes maternas(18).
Um dos argumentos a favor da episiotomia mais enfatizado no Brasil é o de que o parto vaginal deixaria a musculatura vaginal flácida, desqualificando a mulher sexualmente.

A evidência científica é clara de que a episiotomia piora o estado genital ao invés de protegê-lo(19), e que o único fator que propicia um tônus vaginal adequado é a prática de exercícios vaginais - orientação virtualmente ausente da assistência pré-natal ou ginecológica em geral no Brasil. O apelo da episiotomia para "devolver a mulher à sua condição virginal", como proposto por alguns autores na década de 20, teve grande eco na cultura brasileira.
A imagem que o discurso médico sugere é que, depois da passagem de um "falo" enorme - que seria o bebê - o pênis do parceiro seria proporcionalmente muito pequeno para estimular ou ser estimulado pela vagina(20).

Isso poderia implicar numa autorização para que o homem procure uma mulher "menos usada" ou demande como alternativa o coito anal(21).
A necessidade masculina de um orifício devidamente continente e estimulante para a penetração seria então prevenida ou resolvida pela episiotomia, ou mesmo pela cesárea, preservando-se o estatuto da vagina como órgão receptor do pênis. No Brasil, prevalece um "sistema erótico" baseado nas noções de atividade-masculino e passividade-feminino. Essa idéia ratifica a teoria da vagina apertada ou frouxa (passiva, diante do falo que a estimula e é estimulado), em oposição à compreensão de vagina e vulva como órgãos ativos, capazes de se contrair e relaxar, de acordo com a vontade feminina, pois são músculos voluntários(22).
Essa concepção mecânica e passiva da vagina é transposta para o parto, dificultando a compreensão, mesmo pelos médicos, de que esse órgão se distende para o parto e depois volta ao tamanho normal.

Mais uma vez, não se trata do que é "cientificamente correto", mas de sua representação(23).
No Brasil, a episiotomia e seu "ponto do marido", assim como a cesárea e sua "prevenção do parto", funcionam, no imaginário de profissionais, parturientes e seus parceiros, como promotores de uma vagina "corrigida". Se as mulheres acham que vão ficar com problemas sexuais e vagina flácida após um parto vaginal, e que a episiotomia é a solução, elas tendem a querer uma episiotomia(24).


Mas, quando as mulheres têm acesso a informação e sabem que é possível ter uma vagina forte por meio de exercícios, elas passam a compreender que a episiotomia de rotina é uma lesão genital que deve ser prevenida e que elas podem recusá-la(25). Um dos recursos seria a adoção pelos serviços de saúde, no pré-natal e no parto, de um consentimento informado sobre episiotomia com base nas evidências científicas, para que as mulheres possam decidir sobre seu corpo, como já realizado em outros países. Mas contamos sobretudo com a mudança na formação dos recursos humanos e a informação da opinião pública através da mídia.


Essa é a finalidade da Campanha pela Abolição da Episiotomia de Rotina no Estado de São Paulo, que estamos iniciando em 2003. Sabemos que a prevenção da episiotomia passa por mudanças institucionais mais amplas na forma de assistência - desde a liberdade de posição do período expulsivo até manobras simples que facilitam a saída do bebê e os exercícios pélvicos. Por isso, embora o foco seja a episiotomia de rotina, pretendemos contemplar um conjunto mínimo de mudanças que promovam a integridade genital das mulheres e uma experiência satisfatória e segura no parto.


Em resumo, nosso problema é: como promover mudanças institucionais e de opinião pública para reduzir os índices de episiotomia desnecessária (lesão sexual iatrogência no parto), promovendo uma assistência ao parto menos agressiva e uma vida sexual mais satisfatória para mulheres (e seus parceiros).

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